O documentário consumista da Netflix
As grandes empresas no nosso dia a dia e a nossa responsabilidade ao criar produtos
Há alguns dias, estreou na Netflix o documentário A Conspiração Consumista, que tem sido bastante comentado nas redes sociais, ao menos na minha "bolha" de contatos. E é claro que surge a pergunta:
Qual é a nossa responsabilidade, especialmente como designers e pessoas que criam e promovem produtos?
O filme apresenta algumas técnicas e processos que as empresas utilizam para estimular o consumo e valorizar seus produtos, intercalando depoimentos de profissionais de design e marketing com altos cargos em empresas como Amazon, Adidas e Apple, que, em certo momento de suas vidas, discordaram dessas estratégias e começaram a se questionar moralmente sobre o trabalho que realizavam.
As 5 regras que a obra apresenta para criar uma "empresa de sucesso" são:
1 - Vender mais
Eric Liedtke, ex-diretor da marca Adidas, comenta no filme que as empresas estão constantemente criando novas coleções de produtos para que as pessoas sempre tenham um objeto novo para consumir.
Maren Costa, ex-designer de experiência na Amazon, enfatiza também que o objetivo é que a compra seja feita o mais rápido possível e assim que o desejo pelo produto surgir, sem tempo para pensar.
2 - Desperdice mais
O desperdício é pensado de forma estratégica e proposital (técnica conhecida como obsolescência programada) para que muitos dos nossos objetos durem pouco tempo, nos forçando a comprar produtos novos.
Outra tática utilizada é planejar uma construção tão complexa para o produto, ou com processos e partes proprietárias, que inviabilize possíveis reparos para aumentar a vida útil do objeto.
3 - Minta mais
Assim como um mágico nos engana para executar um truque, as empresas fazem o mesmo ao incluir indicações que seus produtos e embalagens são recicláveis quando, na verdade, não são.
As empresas colocam os produtos nas prateleiras dos mercados e, a partir daí, o problema não é mais delas (passa a ser só seu), mas nas mídias sempre há um discurso de sustentabilidade e meio ambiente.
4 - Esconda mais
Há espetáculos enormes de lançamentos de novos produtos, porém, nada é comentado sobre a vida útil do novo equipamento tecnológico.
O consumo sempre vai gerar lixo e isso não é discutido na criação dos produtos nem divulgado publicamente para que as pessoas não saibam que a empresa não trata das suas consequências.
5 - Controle mais
Empresas que controlam a narrativa sobre como são vistas pela mídia e pelo público conseguem se manter atuantes e relevantes no mercado, gerando bons lucros aos seus acionistas, independente de suas irresponsabilidades.
O documentário apresenta esses 5 pontos, intercalando com cenas repetitivas de milhares de produtos invadindo as cidades com uma voz sintética irritante e termina com o total de zero propostas para solução dos problemas. O ex-diretor da Adidas, por exemplo, aparece somente se sentindo culpado com o que fez e não mostra nenhuma iniciativa, só culpa por enriquecer as custas do planeta.
Consumismo: uma relação maior e mais complexa
O que o filme apresenta em uma hora e meia é apenas uma amostra do que as empresas americanas fazem. A nossa relação com o consumo é muito mais complexa do que isso.
Em São Paulo, em 2006, quando Gilberto Kassab era prefeito, foi criada a Lei nº 14.223/06 - Cidade Limpa, com a proposta de limitar e regular a publicidade em espaços públicos.
Naquela época, ainda não tínhamos publicidade invadindo nossas redes sociais e celulares. O impacto vinha de banners, outdoors, cartazes, placas e anúncios espalhados pela cidade. Um dos objetivos descritos na lei era a ordenação da paisagem e "o bem-estar estético, cultural e ambiental da população".
Obviamente, a lei foi alvo de críticas das agências de publicidade, que geralmente trabalham para criar necessidades artificiais em produtos dos quais as pessoas não precisam... Os donos de lojas também não gostaram por terem que ajustar as fachadas de seus estabelecimentos. Mas, para a população, o resultado foi muito positivo, e a lei acabou cumprindo sua proposta com o tempo e a mesma iniciativa foi realizada em outras cidades.
Parecia que finalmente teríamos espaços livres de propaganda e visualmente mais agradáveis, mas isso foi apenas uma vitória temporária.
A crescente dos Naming Rights
Seguindo a regra número 1 apresentada no documentário, os contratos de naming rights (acordos que permitem que empresas paguem para explorar comercialmente o nome de locais) estão em crescendo cada vez mais.
Afinal, se não é possível para uma empresa colocar seu nome em um letreiro piscando em neon na cara da população nas ruas e avenidas, por que não se apropriar do nome de um espaço acessado por milhões de pessoas todos os dias com o nome da sua marca?
Nos esportes isso é muito comum e talvez o maior contrato seja o estádio do Palmeiras, Allianz Parque, que recebe cerca de R$ 15 milhões por ano pela venda do nome, com validade até 2034. Outros exemplos incluem os estádios MorumBis, Casa de Apostas Arena Fonte Nova e Itaipava Arena Fonte Nova.
Em uma matéria do UOL sobre naming rights, José Sarkis Arakelian, consultor e professor em estratégia de marketing, comenta:
As pessoas entenderam a dinâmica e aceitaram que esses acordos eram uma forma de um clube de futebol, por exemplo, receber um financiamento externo. Isso fez com que as empresas considerassem mais esse tipo de investimento, principalmente por não haver estranhamento pelo consumidor.
Logo, já que as pessoas “aceitaram essa prática” com seus times esportivos, onde existe uma relação mais emocional, por que não “aceitariam” em outros locais?


Hoje vemos a mesma negociação de naming rights ocorrer no Metrô de São Paulo e do Rio de Janeiro, com estações como Carrão-Assaí Atacadista e Botafogo/Coca-Cola. A CPTM, em São Paulo, também negociou as estações de trem Jurubatuba - Senac e Morumbi - Claro.
Na mesma reportagem do UOL, Iara Silva, professora da ESPM e consultora nas áreas de marketing e comunicação, diz:
Em um ambiente de comoditização de produtos e ofertas, sempre muito semelhantes, a aquisição dos naming rights é uma das estratégias para agregar valor à marca, para ela ser lembrada de forma positiva, o que valoriza sua escolha no momento da compra de um produto ou utilização de um serviço.
Ou seja, é aquela máxima de "quem não é visto, não é lembrado" com uma pitada da regra 5 para controlar a narrativa...
Além dos acordos de naming rights, há também a apropriação de locais e experiências pelas empresas, sempre com o objetivo de estar presente o máximo possível na vida dos consumidores. Um exemplo disso é a árvore de Natal do Ibirapuera, decorada com a cor e a marca de um banco.
E a nossa responsabilidade nisso?
Para pensar no nosso papel nesse ciclo, é importante lembrar que a cultura do consumo vem de longa data, desde sempre as empresas querem vender mais.
Antes, era comunicado de forma massiva em espaços públicos da cidade. Agora, é direcionado como um laser: automatizado, personalizado em nossos celulares por algoritmos, e indo além, comprando lugares e eventos que precisamos ou gostamos de frequentar. Portanto:
Nós somos mais vítima dessa cultura consumista do que responsáveis.
Podemos até ser uma pequena parte dessa corrente do consumo capitalista, mas fazemos parte apenas porque não há outra opção. Ou jogamos o jogo, ou não trabalhamos. Como não temos o privilégio de não trabalhar, não há escolha.
Não é razoável cobrar essa responsabilidade de um designer de produto ou analista de marketing. O que essa pessoa deveria fazer? Interromper a reunião, convencer o time a considerar futuros alternativos, refutar a estratégia da empresa, persuadir os diretores a mudarem o planejamento (e abrirem mão de seus bônus por não cumprirem as metas) e ainda apresentar um novo plano ao presidente e aos acionistas para evitar uma crise global?
Os verdadeiros responsáveis são as pessoas que decidem as estratégias das empresas. Elas, sim, têm poder suficiente para promover grandes mudanças de dentro para fora. Entretanto, como vemos no documentário da Netflix, essas pessoas não demonstram qualquer preocupação com esse tema.
Soluções individuais, como boicotes ou a escolha de marcas mais comprometidas, são atitudes que pouquíssimas pessoas conseguem adotar. A grande parcela de população não tem essas escolhas pois precisam comprar a marca que tem acesso, no sentido de disponibilidade ou de preço.
Acredito que já temos a indignação inicial sobre essa situação (presumindo que você ainda esteja acompanhando este texto comigo). O próximo passo é nos organizarmos para pensar em alternativas coletivas: cobrar regulamentações, exigir fiscalizações, demandar responsabilizações, reivindicar reparações...
Além do esforço coletivo, é preciso colaboração para desenvolver alternativas de trabalho, produção e sistema: criar produtos duráveis e facilitar reparos, adotar métricas que vão além do lucro, conceber novos modelos de negócios, superar a sustentabilidade e buscar a regeneração do planeta...
Há muitas alternativas, muitas pessoas com conhecimento e disposição para ajudar e muito trabalho a ser feito. Só que não há muito tempo, tem que ser agora.