Como ler nos transforma
Pega um café ou um chá e vamos conversar sobre os processos da leitura

Recentemente decidi mudar alguns hábitos. Um deles era diminuir o tempo de uso de telas. Como se já não bastasse ficar olhando para elas durante horas seguidas no trabalho, o celular estava na rotina antes de dormir e, geralmente, eu passava muito mais tempo do que deveria nele.
Outro hábito que queria ter era o de ler mais. Eu costumava ler textos, artigos e materiais técnicos para o trabalho ou para o curso que estou fazendo, mas eu não me lembrava qual tinha sido o último livro de ficção que eu havia lido.
Como uma balança que precisava ser reequilibrada, a combinação dos dois era bem oportuna, então, toda vez que eu me via indo para algum aplicativo no celular para "passar o tempo" ou ficar "preso" em alguma linha do tempo com rolagem infinita, eu me forçava a parar e pegar um livro.
E não por acaso, um dos livros que escolhi foi "O Cérebro no mundo digital: os desafios da leitura na nossa era" de Maryanne Wolf. É sobre ele que gostaria de conversar hoje.
A leitura não é algo natural para os humanos

A leitura é um processo muito mais complexo do que parece. Somos alfabetizados e achamos que é apenas mais um processo de aprendizado que temos em nossas vidas. Maryanne Wolf conta, no começo do livro, o quão fantástica é essa habilidade na história da humanidade:
Os seres humanos não nasceram para ler. A aquisição do letramento é uma das façanhas epigenéticas mais importantes do Homo sapiens.
Não conhecemos outra espécie que lê. Pense na quantidade de idiomas, estruturas e tecnologias que criamos com os objetivos de escrever e ler. É realmente impressionante.
A autora segue fazendo uma comparação com outra habilidade de comunicação, a nossa fala:
Em contraste com a leitura, a linguagem oral é uma das nossas funções humanas mais elementares. Como tal, possui genes específicos, que se desdobram com assistência mínima para produzir nossas capacidades de falar, ouvir e pensar por meio de palavras. [...] É por isso que a criancinha, se for colocada no ambiente típico de qualquer linguagem, aprenderá a falar aquela linguagem sem necessidade de instrução. [...] Não é assim para desenvolvimentos recém-chegados, como a leitura [...] ler é algo que tem que ser aprendido.
Ou seja, ao contrário da nossa predisposição genética para escutar, compreender e reproduzir as palavras do nosso ambiente, a leitura exige um processo de aprendizagem bastante diferente e novo por parte de nosso cérebro.
É importante lembrar que o aprendizado e manutenção dessa atividade é totalmente influenciada por fatores externos, como o ambiente e a cultura (acesso ao aprendizado, por exemplo) e fatores pessoais, como o desenvolvimento neurológico atípico (como os casos de dislexia).
Como a leitura funciona no nosso cérebro

O nosso cérebro consegue fazer um número absurdo de conexões e, justamente por meio dessa capacidade, que conseguimos aprender e realizar diversas funções, como a leitura, que é uma atividade relativamente nova pensando na nossa evolução biológica.
Maryanne Wolf comenta:
Um novo circuito era necessário porque ler não é nem natural, nem inato; muito pelo contrário, é uma invenção não natural e cultural que existe, se tanto, há seis mil anos.
Uma capacidade do cérebro no exercício da leitura é a sua plasticidade. Ela permite a organização das conexões cerebrais, a criação de novos caminhos e a conexão ou realocação de partes específicas para ir além das funções originais. A inteligência artificial pode tentar, mas não chega nem perto...
Quanto mais novos somos, mais "flexível" e "adaptável" nosso cérebro é com sua plasticidade, esse é um dos motivos por que as crianças aprendem coisas novas tão rápido.
Os adultos também contam com esse fator, mas à medida que envelhecemos precisamos de mais esforço para fazer essas mudanças e mais tempo para consolidá-las. O importante é saber que nunca é tarde demais.
Maryanne Wolf dá exemplos sobre a plasticidade no nosso aprendizado:
Essa habilidade em formar circuitos recém-reciclados permite-nos aprender toda sorte de atividades não planejadas geneticamente – desde fazer a primeira roda, até aprender o alfabeto ou surfar na rede, ao mesmo tempo em que ouvimos a banda Coldplay e mandamos tuítes. Nenhuma dessas atividades jamais teve uma conexão fixa ou tem genes especificamente dedicados a seu desenvolvimento; são invenções culturais que envolvem intervenções corticais.
Novas perspectivas sobre os outros (e nós mesmos)

Um dos benefícios da leitura é o de nos transportamos para outras histórias e vivermos outras vidas, como as personagens dos livros. Em poucas páginas podemos, por exemplo, experienciar outras situações, épocas e culturas. Maryanne comenta:
Por um determinado tempo, abandonamos a nós mesmos; e quando retornamos, às vezes acrescidos e fortalecidos, estamos mudados intelectual e emocionalmente. [...] Assumir uma perspectiva não só conecta nossa empatia com o que acabamos de ler, mas também expande nosso conhecimento interiorizado do mundo. São capacidades aprendidas que ajudam a nos tornar mais humanos.
Além desse processo empático, onde tentamos nos colocar no lugar do outro, há em nosso cérebro neurônios que são especializados nessa função: os "neurônios-espelho".
Maryanne conta que cientistas de Stanford estudaram o que acontece quando lemos um texto de ficção com atenção e descobriram que ativamos regiões do cérebro alinhadas com aquilo que as personagens estão sentindo e fazendo. Em outras palavras a autora comenta:
Muito provavelmente, os mesmos neurônios que você utiliza quando mexe as pernas e o tronco são ativados também quando você lê que Anna se jogou na frente do trem. [...] Uma grande parte de seu cérebro foi ativada tanto pela empatia ante o desespero visceral da personagem, quanto pela ação motora de neurônios-espelho interpretando esse desespero.
Maryanne ainda afirma que "a compreensão da perspectiva dos outros seres humanos pode dar razões sempre novas e variadas para encontrar maneiras alternativas e empáticas de lidar com os outros que habitam nosso mundo".
Logo, se a leitura exercita a empatia e permite que nosso cérebro interprete também as ações, a falta dessa atividade atrofia nossa "compreensão dos outros". E, infelizmente, é fácil identificarmos isso na sociedade, onde pessoas diferentes dialogam cada vez menos.
Os processos analíticos da leitura profunda
A leitura também nos faz exercitar nosso raciocínio. Quando lemos juntamos a informação que acabamos de adquirir e integramos com nossas próprias observações e pensamentos, ou seja, unimos o que vemos e o que conhecemos.
Esse processo leva a formação de novos conceitos e ideias, trabalhando nossa capacidade crítica e, no seu devido tempo, tiramos nossas interpretações e conclusões.
Maryanne Wolf chama esse processo de leitura profunda e comenta:
A leitura, pelo menos toda a leitura profunda, requer o uso de raciocínio analógico e inferência, se quisermos desvendar os múltiplos patamares de sentido daquilo que lemos.
Esse é um trabalho constante e de longo prazo, onde a prática e constância são fundamentais para sua melhoria, conforme a autora complementa:
Quanto mais sabemos, mais conseguimos estabelecer analogias, e mais usamos essas analogias para inferir, deduzir, analisar e avaliar nossas convicções antigas – e tudo isso amplia e refina nossa plataforma interna crescente de conhecimentos. O contrário é também verdadeiro, com sérias implicações para nossa sociedade presente e futura: quanto menos soubermos, menos possiblidades teremos de estabelecer analogias, de ampliar nossas habilidades inferenciais e analíticas e de expandir e aplicar nossos conhecimentos gerais.
Como exemplo ela cita o personagem Sherlock Holmes, o detetive criado por Arthur Conan Doyle, que tem a maestria em unir seu poder de observação, seus conhecimentos e sua capacidade de raciocínio lógico para desvendar os casos.
A análise crítica e a geração de novas ideias

Conforme vamos sintetizando o conteúdo que lemos com nosso conhecimento, trabalhado com as analogias, deduções, induções e inferências, vamos chegando ao processo de análise crítica para avaliar interpretações e conclusões da nossa leitura.
Maryanne Wolf cita a explicação de Mark Edmundson, autor do livro "Why Read?" ("Por que ler?" em tradução livre), sobre "O que é exatamente o pensamento crítico":
O pensamento crítico inclui a capacidade de examinar e potencialmente desmascarar crenças e convicções pessoais.
A autora apresenta ainda duas ameaças ao pensamento crítico:
A adesão a um modo de pensar que não permita questionamentos (como uma opinião política ou religiosa, por exemplo), que se torna impenetrável à mudança e ofusca qualquer tipo de pensamento divergente, mesmo que embasado em evidências
A falta de orientação para o estudo de outros conhecimentos, ou a impaciência de entender o suficiente sobre os sistemas e pensamentos passados (por exemplo, as contribuições de Sigmund Freud, Charles Darwin ou Noam Chomsky)
Segundo Maryanne:
Como resultado, a capacidade de aprender o tipo de pensamento crítico necessário para uma compreensão mais profunda pode ficar atrofiada [...] o pensamento crítico nunca é uma coisa que simplesmente acontece.
Além disso é em conjunto com esse exercício de pensamento crítico que exploramos e damos vida as nossas novas ideias, juntamos pensamentos e conhecimentos diferentes, ou colocando-os sob uma nova ótica.
O insight é a culminação dos múltiplos modos de exploração que mobilizamos acerca daquilo que lemos até o momento: a informação colhida no texto; as conexões com nossos melhores pensamentos e sentimentos; as conclusões críticas conquistadas; e logo o salto de consequências imprevisíveis num espaço cognitivo onde podemos, quem sabe, vislumbrar pensamentos completamente novos.
Então, por que lemos?

Você já se fez essa pergunta?
Maryanne Wolf responde da seguinte forma:
Quando reencontrei meu antigo eu leitor, a resposta que me veio é esta: leio para encontrar uma razão nova para amar este mundo e também para deixar este mundo para trás – para entrar num espaço onde eu possa vislumbrar o que está além de minha imaginação, além de meu conhecimento e de minha experiência da vida e, às vezes, onde eu possa, como o poeta Federico García Lorca, “ir muito longe, para me dar de volta minha antiga alma de criança”.
Eu confesso que nunca me perguntei isso. Recomecei para mudar hábitos e, talvez, continuo simplesmente porque a leitura de ficção me deixa feliz de viver outras vidas e a leitura de não ficção é uma conversa boa com as ideias de outras pessoas.
Refletindo sobre os processos do nosso cérebro em se adaptar, criar e orquestrar funções e áreas a cada leitura que fazemos, sobre nossa capacidade crítica e criativa de juntar ideias e conceitos, podemos dizer que literalmente nos tornamos pessoas diferentes após uma leitura.
Esse pensamento também dá um sabor novo quando escutarmos alguém falar:
Esse livro mexeu comigo…
Tudo isso me fez querer ler ainda mais…
E por aí, como vão suas leituras?